sexta-feira, 26 de março de 2010
Muralha
E se por avos de segundo pudesse expulsar toda a gosma que me fertiliza o estômago? A convalescença teria iniciado num exíguo avo em que tudo se resumiria a um vómito de pureza espontânea. Os baús e os velhos móveis carregados de contos soltariam o pó que neles repousa. A cave apoderar-se-ia do estatuto de senhora e rainha da sala de chá do palacete. As cortinas tombariam e os lençóis seriam confundidos com flores campestres. A paz apunhalar-me-ia as costas e obrigar-me-ia a subir cada degrau da avassaladora escadaria escoltada pelo corrimão de ferro enferrujado. O quarto de casal não teria vista para a serra nem vidros nas janelas. O quarto de casal estaria atulhado de memórias aprisionadas no papel de parede florido. A cama matrimonial chinesa e as folhas secas da amendoeira do jardim francês denunciariam todas as noites de fogo passadas. O soalho repleto de caruncho soltaria gemidos de prazer por todos os fantasmas que o assombram. No tocador manco estariam pousadas as jóias. As pérolas seriam as minhas favoritas. Terias mergulhado e achado as mais belas ostras só para mim. Terias furado pérola após pérola noite dentro. No espelho estaria trancada a minha imagem enquanto me penteava com a escova de crina de cavalo lusitano. A banheira imperial estaria coberta por caules de roseiras. Da banheira ouvir-se-ia o respirar do sino da capela. Atirar-me-ia da varanda só para te sentir o perfume de perto. O céu seria alcançável e o chão estaria a meio palmo dos meus calcanhares. A porta de entrada com dois metros de altura fechar-se-ia. O coche puxado por flamingos estaria à minha espera. Caminharia na sua direcção ao som da brisa. Tu ficarias na biblioteca e ver-me-ias partir sem pingo de remorsos. Repousarias no teu abonado trono revestido por veludo negro. Sentirias saudade daquilo que nunca fomos e jurarias que me procurarias e que o nosso novo palacete seria de cristal. Abandonarias a estufa, atravessarias o portão e repararias nos anos que por ti passaram. Não haveriam mais nós de marinheiro. Apanharias o comboio destinado ao passado. Reconstruirias o telhado, podarias as margaridas, trocarias as velas do candelabro e abraçar-me-ias com o peito cheio de oxigénio.
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